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  • Foto do escritorV.

Vai ficar tudo bem?! - Nota de uma terapeuta em tempos de Covid-19.

Possivelmente esta nota vai “chocar” muitas pessoas, mas tenho de escrever sobre isto.


Não entendo porque é que tantas pessoas, instituições, televisões e afins adotaram a ideia de “Vai ficar tudo bem!”. Confesso que a frase me irrita um bocadinho, talvez por não estar fundamentada num princípio da realidade, mas da ilusão numa fé de que tudo ficará bem. A este propósito fui pesquisar a origem da mesma, que percebi ser fundamentada na fé cristã [fonte: https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2020-03/vai-ficar-tudo-bem-juliana-norwich.html].

Eu percebo que seja necessário acalmarmos a ansiedade, a angústia e o medo. Mas ficar tudo bem? Não. Ficar tudo diferente? Talvez. Não quero com isto passar uma mensagem derrotista, alarmista ou provocativa. Apenas penso que não é necessário lançar um “vai ficar tudo bem”, de modo a que as pessoas acreditem que sim. A esperança e a fé são coisas bonitas e importantes…, mas numa situação atual, como a que vivemos – em que todos vivemos o medo e a angústia, seja pela(s) razão que for, penso que é coloreada e ressoa a um certo paternalismo.


David Hockney, 2020

Trabalho com crianças, e percebo que a ideia era transmitir(-lhes) uma ideia otimista, esperançosa. Mas vivemos todos no meio do tsunami. Sim, o tsunami ainda está e só quando passar é que vamos poder olhar para os estragos e as consequências de tudo isto. E… não, (desculpem, mas) não vai ficar tudo bem. Diferente. Muito diferente. Por onde começar? Ou onde acabar? Na crise sanitária, mental, económica, educacional, política?!


A verdade é que há centenas (bem, desculpem já são milhares a nível mundial!) de mortos, onde muitos deles não tiveram lugar a uma despedida com rosto, com abraços ou lágrimas conjuntas. Foram lutos em ruínas, com tentativas de suspensão.


Há o medo da aproximação ao outro, em que o outro pode ser o(a) nosso(a) “mais velho(a)”, sem saber quando o podemos voltar a ver, porque está fora de perigo com a nossa aproximação. Fica a saudade e, em alguns casos encontros de “3ºs andares” ou mediados pela distância teleinformática.


Há uma crise económica à espreita que afetará tudo e todos os sectores, sobretudo o social.


Washington Post

Há escolas fechadas, mas onde o conteúdo e os objetivos, infelizmente continuam a ser uma prioridade, por isso carregamentos e toneladas de tarefas de modo a acreditar que se trabalha, mas em que os pais se desdobram em papeis que não são os seus. Sim, os pais são para educar, brincar e ensinar, mas não para ajudar com conteúdos em tempos record e que estão fora da órbita do seu domínio. – Se soubessem as consequências disto, no stress emocional entre as famílias….


Há professores que abriram as portas da sua imaginação, reinventaram o ensino e procuraram adaptar-se e fazer adaptar os seus alunos a esta nova realidade, com ou sem “fingimentos” mútuos.


Há bebés a nascer e que são retirados do calor materno, porque o vírus, anda à espreita… se ouvissem o que a psicologia (e outras áreas da saúde) poderia aportar a tão tremendíssima “loucura”…


Há idosos isolados. Com os medos de nunca mais poderem ver a sua família… os que sempre cuidaram, e que precisavam para os cuidarem.


Há fronteiras fechadas, com circulações limitadas. E há esquecimentos de outras realidades que tanto faziam pensar noutros tempos.


@alirezapakdel_artist

Há profissionais da saúde, da segurança, dos supermercados e mercadorias… que não podem parar, mas que assumem e sentem as suas angústias, ao chegar a casa.


Há, na minha linha de pensamento compreensão à realidade que não pode ser alicerçada na paranóia ou na perturbação obsessiva de quem se preocupa e que sente um misto de culpa e preocupação face ao outro e em relação ao outro.


Há desempregados, há artistas desorientados, há lay-off’s e CoronaBonds.


Há muita adaptação, e muitos mais “há”, com certeza…. Mas…


Há uma crise, meus senhores. E em tempos de crise “não vai ficar tudo bem”, porque agora acontece e depois virá – vulnerabilidade e insegurança, repleta da nossa “insustentável leveza do ser”


Só há uma coisa certa no meio desta pandemia: o lugar onde vivíamos e que conhecíamos até então, não será o mesmo – para ninguém!



Por isto, assumir as nossas preocupações, medos e angústias, enquanto adultos fará com que as nossas crianças cresçam e se desenvolvam com base na realidade, e não na fantasia.


Acham que ficará tudo bem, quando vivemos há mais de um mês em estado de emergência sob a forma de quarentena? Com pessoas confinadas, umas sozinhas, outras acompanhadas e, outras mal-acompanhadas....


Assumamos. Essa é a nossa decência enquanto responsáveis pelas nossas crianças. Dizer-lhes a verdade, respondendo às suas perguntas e dúvidas. Há pais mais assustados que os próprios filhos. E, há filhos perdidos no meio deste turbilhão, em que o último que pensam é que tudo vai ficar bem. Porque apesar de fortes, corajosos, cuidadosos, determinados, e até otimistas, temos desconfianças, dúvidas e questionamentos face ao futuro. Porque somos humanos. E, como tal, temos dúvidas e (sentimos) emoções.


No outro dia, uma menina, (talvez a minha inspiração para fazer esta nota), perguntava-me “Vera, vai ficar tudo bem?” – ao que respondi: “Não sei… estamos a fazer por isso, logo se verá, mas por agora estamos a fazer para que tudo corra pelo melhor…


Ah… e que não me venham com as ideias baseadas na psicologia positiva e com frases “que negativa que és!”. A verdade última, é apenas uma: Estamos em estado de sítio. Até ao final, o que podemos fazer é abrir as janelas, deixar o ar entrar… com a vontade de abraçar, com a vontade de chegar… ao final. Por enquanto o “vai ficar tudo bem”, parece-me apenas uma frase utópica, e ilusionista. Melhores dias virão, com certeza.

Até já,

V.

 
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